Inherent Vice (Paul Thomas Anderson)

Vício Inerente é o melhor momento da carreira do Paul Thomas Anderson, e não só porque ele é um reminiscente do Altman dos anos 70, ou um dos mais subversivos neo-noirs que poderiam ser feitos. Do contrário, o que torna esse universo algo tão fascinante é justamente a engenhosidade com a qual elementos cinéfilos tão verossímeis quanto alucinados contrapõem-se sobre a base de uma adaptação de Thomas Pynchon e os anos 70 em si.  Num arco milimetricamente controlado e condensado pela nostalgia, que toma formas ainda mais enigmáticas do que em O Mestre, há algo na imagem desproporcional de Anderson que beira o singelo (e a relação dicotômica entre Phoenix e Brolin em contraste a feminilidade em suposto segundo plano é apenas o epicentro dessa idealização).

Basicamente um aperfeiçoamento narrativo do que o David O. Russell tentou fazer em Trapaça, o que me é mais curioso nesse exercício de autoconsciência e diluição de elementos sub expostos da imagem é em como Anderson consegue obter um desenvolvimento completamente espontâneo, graças unicamente a sua capacidade de captar a desenvoltura do elenco em seu cume de exploração performática, transformando praticamente todo o processo narrativo num registro documental subentendido à capacidade dramática de seu texto. Isso se dá, excepcionalmente, porque Anderson possui uma visão muito bem equilibrada da misé en scène (estética, trilha sonora, elenco, referências, etc.); e tal liberdade autoral, também, concebe à personificação de Joaquin Phoenix, p. ex., o tom irreverente que o mesmo pede, sem em nenhum momento haver a necessidade latente de desmistificação ou desconstrução de sua representatividade, como ocorre com os personagens de Boogie Nights em seu segundo ato.

Tampouco fosse a magnificência do roteiro em conduzir um estudo dos mais sólidos sobre a paranoia e psicodelia dos anos 70 baseada totalmente no banal, Anderson ainda acha tempo para ser antológico e um delicioso comediante, inserindo gags desde uma sequência de Josh Brolin chupando um picolé de chocolate (!) até uma santa ceia (hippie) com pizzas (!). Se existe um momento para a exaltação da cinematografia do cara, esse momento é indiscutivelmente com Vício Inerente.

Focus (Glenn Ficarra & John Requa)

“A diferença entre suspense e surpresa é muito simples, e costumo falar muito sobre isso. Mesmo assim, é frequente que haja nos filmes uma confusão entre essas duas noções. Estamos conversando, talvez exista uma bomba debaixo desta mesa e nossa conversa é muito banal, não acontece nada de especial, e de repente: bum, explosão. O público fica surpreso, mas, antes que tenha se surpreendido, mostraram-lhe uma cena absolutamente banal, destituída de interesse. Agora, examinemos o suspense. A bomba está debaixo da mesa e a plateia sabe disso, provavelmente porque viu o anarquista colocá-la. A plateia sabe que a bomba explodirá à uma hora e sabe que faltam quinze para a uma – há um relógio no cenário. De súbito, a mesma conversa banal fica interessantíssima porque o público participa da cena. Tem vontade de dizer aos personagens que estão na tela: ‘Vocês não deveriam contar coisas tão banais, há uma bomba debaixo da mesa, e ela vai explodir’. No primeiro caso, oferecemos ao público quinze segundos de surpresa no momento da explosão. No segundo caso, oferecemos quinze minutos de suspense. Donde se conclui que é necessário informar ao público sempre que possível, a não ser quando a surpresa for um twist, ou seja, quando o inesperado da conclusão constituir o sal da anedota.”

Essa foi a resposta de Hitchcock para Truffaut quando perguntado sobre a diferença que se deve fazer entre suspense e surpresa. Também foi a questão que me pairou durante toda a sessão de Focus, filme que nunca me deixa exatamente claro qual posição vai tomar em cada nova sequência (e isso levando em conta a ironia do título).

Sem exatamente ser claro sobre ser uma espécie de whodunit, ou simplesmente um filme cujo plot não tem importância, e muito menos seus vários twists, Focus já seria um péssimo exemplo de entretenimento porque os próprios diretores, Glenn Ficarra e John Requa, parecem mais preocupados em conceber um stylish estético e nunca entendem muito bem em qual sentido a narrativa vai percorrer junto de tal concepção. E, embora seja delicioso acompanhar a desenvoltura femme fatale-esque de Margot Robbie em cena, graças, acima de tudo, de seu carisma, o longa dos parceiros do ótimo Crazy, Stupid, Love esquece elementos fundamentais para o tipo de história que se pretende (e entender que o espectador não é estúpido é um desses elementos).

É num fetiche sobre a trilogia Ocean’s com qualquer sub-filme que veio na onda dele, que Focus se torna um desses exercícios preguiçosos, que se quer ser inteligente, mas acaba bem mais como uma tentativa frustrada de criar trucagens que sejam minimamente deliciosas de se acompanhar, principalmente por se tratar de criminosos impenetráveis em suas carcaças de perfeição egomaníaca.

[ressaca]

Passou-se a euforia de uma das mais políticas award seasons que tivemos em algum tempo. O circuito comercial volta ao seu estado de estagnação (até que algum blockbuster deslanche na grade de programação) e para os mais assíduos fica a expectativa da listagem oficial do Festival de Cannes que acontece logo mais. Nessa época, de alguma forma, sempre dá para tirar proveito de um ou outro lançamento interessante que recebe as graças de ser distribuído num cineplex da vida, vide o novo do Cronenberg que estreia em todo o país depois de quase um ano atrás Julianne Moore levar o prêmio de melhor atriz em Cannes.

Eu particularmente aproveito essa época menos prolífica para tirar o tempo perdido da award season e ver alguns filmes que acabei perdendo do ano anterior (além de uma sessão-ritual de Meninas Malvadas, claro). Também é bacana porque nessa época sobra tempo de pegar algum diretor cultuado e fazer uma maratona (p. ex., desde o último mês venho fazendo uma visita na filmografia do Hitchcock, enquanto leio Hitchcock/Truffaut pela primeira vez).

No mais, ainda sem inspiração p/ um post decente sobre Hitchcock, fica o registro de alguns lançamentos de + em breve que vi nas últimas semanas:

Kingsman: Serviço Secreto, dir. Matthew Vaughn, 2015 (**¹/²)
62Não sou um grande fã de Primeira Classe, mas Vaughn é um diretor que me cativa mesmo quando erra feio, já que sempre o vi como um artesão e um ponto comum entre Guy Ritchie e Edgar Wright. Porém, desde que fez o primeiro Kick Ass, ele parece ter perdido a mão criativa de misturar aquela boa dose de humor pop e ação estilizada (Kingsman me soa bem mais como um limite do melhor/pior que sua forma poderia chegar). E, embora o filme seja um desses guilty pleasures que não ofendem, também não deixa de ser um emaranhado de soluções problemáticas. Numa tentativa frustrante de extrair de sátiras e gags espertinhas um toque minimamente sentimental que se pretende com o arco que conduz o microcosmo do protagonista interpretado pelo carismático Taron Egerton, Kingsman, no fim, é Vaughn fazendo o típico piloto automático de diretor de estúdio.

118 Dias, dir. Jon Stewart, 2015 (*)
66Jon Stewart declarou uma vez que já escreveu inúmeros filmes sob efeito da maconha, mas droga nenhuma deveria ser culpada pelo resultado disso aqui.

Mapas Para as Estrelas, dir. David Cronenberg, 2014 (****)
69Os últimos dois filmes do Cronenberg são quase obras-primas, e eu não esperaria algo menos que maravilhoso de Mapas Para as Estrelas por duas razões: 1) é a versão perturbada dele p/ Crepúsculo dos Deuses; 2) tem Julianne Moore. No entanto, não imaginava ser surpreendido tão positivamente, já que não lembro a última vez que vi Cronenberg dirigir um elenco tão desprendido do potencial dramático do mesmo (e isso se tratando de um filme milimetricamente formulado). É deliciosamente impressionante como Cronenberg constrói toda a ideia de que esse é um filme puramente sintético brincando com as possibilidades e os limites do banal, sem em nenhum momento perder o controle da mise en scène. Isso tudo só comprova que ele nunca esteve tão em forma com seu cinema como atualmente.

Renascida do Inferno, dir. David Gelb, 2015 (**¹/²)
77Não mais que uma compilação de efeitos e maneirismo do cinema de horror da última década, o mais legal de Renascida do Inferno é que David Gelb brinca com a ideia do trashism de forma bastante inventiva, e, embora as soluções sejam das mais previsíveis e preguiçosas possíveis, o filme consegue ser bem mais divertido que qualquer sequel de Atividade Paranormal.

Gerontofilia, dir. Bruce LaBruce, 2013 (**)
70Nunca vi em LaBruce um diretor promissor, mesmo eu achando cativante que ele ao menos tente ser um à sua maneira. Otto, p. ex., mesmo que um filme cada vez menor numa revisitação, é ainda um produto marginal por excelência. Não à toa, quando li as primeiras informações de Gerontofilia, eu realmente estava empolgado para ver o resultado, principalmente porque desde o início me parecia ser um LaBruce mais contido a realmente contar uma história do que expressamente chocar pelo puro prazer do choque. E se por um lado o filme consegue aproveitar o que melhor o tema tem pra oferecer quanto melodrama, por outro a estética parece bem mais com algo que Xavier Dolan faria. Em algum momento da trama uma das personagens explica porque o envolvimento do protagonista com um idoso é um ato simbólico, e é justamente por se desdobrar de maneira tão expositiva que o filme perde todo o charme que pretendia alcançar.